Você acha que lugar de mulher é na cozinha? Lugar das afrodescendentes é cuidar da casa da mulher branca? Caso afirmativo, você precisa urgentemente mudar seus referenciais.
O Século XXI chegou marcado pela agitação dos muitos compromissos e contínua sensação de estar atrasado sem tempo, puro stress! Neste contexto a vida de muitas mulheres se desdobra entre ser mãe, profissional, mulher. Elas acalentam sonhos que ultrapassam sua “fragilidade” para ganhar visibilidade nas conquistas diárias, revelando fortaleza, inteligência, feminilidade, competência, proatividade. Assim se faz caminho que se abre para a posteridade, pois o exemplo feminino derruba preconceitos seculares e contraria as previsões pessimistas. Refletir sobre esta temática parece lugar comum; entretanto, há uma realidade que não se costuma falar: a realidade da mulher afrodescendente.
Passados mais de cento e vinte anos da abolição da escravidão no Brasil (1888), ainda há inúmeros episódios de racismo veiculados pelos Meios de Comunicação Social. É, racismo no Brasil! Não venha dizer que somos uma democracia racial, porque os fatos e a situação econômica de milhões de afrodescendentes desmascaram o perverso racismo brasileiro e, tratando-se da mulher afrodescendente, a discriminação se avoluma: mulher, negra e, se for pobre, forma uma mistura explosiva na “redondeza quadrada” da mente de quem se julga superior por ter pele clara!
Não se concebe em pleno século XXI que uma visão míope (desculpem-me os míopes) acredite na falácia da superioridade racial! Entretanto, transcorridos tanto tempo, há quem se deixa enganar por esse raciocínio medíocre. A ciência biológica afirma não existir raças entre os humanos. Pesquisas afirmam a África como o “berço da humanidade”; no entanto, a sociedade persiste e insiste na classificação a partir da cor da pele. Ó, quanta insensatez!
O grupo de pesquisa da UFPI, do Centro de Ciências da Educação, sob a orientação do pesquisador professor doutor Francis Musa Boakari, constituído por alunas da graduação em Pedagogia e por mestrandas em Educação, Elizete Dias da Silva e Francilene Brito da Silva desenvolve a pesquisa Estórias de brasileiras afrodescendentes de sucesso: diferenciações intergeracionais de raça e gênero na educação. “O propósito básico deste estudo é determinar, aprofundando a compreensão das experiências e estratégias que as mulheres afrodescendentes de gerações diferentes usam para superar as discriminações raciais e de gênero presentes nas suas vidas cotidiana e sócio educacional e também, desvelar se as políticas que objetivam amenizar e remover as desigualdades sociais baseadas na raça e no gênero estão de fato, tendo os efeitos desejados na vida da população negra”. (Objetivo geral do Projeto)
Nossa pesquisa tem relevância científica e social por tratar de tema silenciado na nossa sociedade e quer contribuir para a reflexão e superação do racismo no Brasil. Para realizar o objetivo acima citado, foram entrevistadas mulheres afrodescendentes que conquistaram sucesso na vida escolar, acadêmica e profissional, superando preconceitos e discriminações. São emocionantes os depoimentos ao mesmo tempo são importantes para as gerações mais jovens que, na contemporaneidade, também enfrentam discriminações raciais. Embora as entrevistadas não tenham a intenção de serem ícones, são exemplos de vitória numa sociedade marcadamente racista e sexista.
As afrodescendentes entrevistadas trazem em comum a dedicação aos estudos como meio eficaz para superarem barreiras. Este dado pode ser usado como justificativas para a ala contrária às cotas para o ingresso de afrodescendentes nas universidades. Por outro lado, diametralmente oposto, lança luz sobre o mesmo tema, pois ainda os afrodescendentes são minoria nos espaços acadêmicos, seja como graduand@, mestrand@, doutorand@ e professor@ universitári@. Dados do IBGE (PNAM, 2008) demonstram a presença rarefeita dos afrodescendentes nos espaços acadêmicos, apresentando proporção de 20,8% para brancos e 7,7% para pretos e pardos entre estudantes de 18 a 25 anos frequentando Ensino Superior. No tocante a conclusão dos cursos universitários os números baixam ainda mais, 14,3% para brancos e 4,7% para pretos e pardos.
Outro aspecto comum entre as entrevistas foram as situações de discriminação enfrentadas ao longo das suas trajetórias de vida. Foram impedidas de participar de festividades promovidas pelas escolas que frequentaram; às vezes sem explicação; outras vezes era dito que era por serem negras. Também citaram situações em que foram e ainda são confundidas com empregadas domésticas. Este fato demonstra a concepção preconceituosa sobre a mulher negra, concebida como alguém sem escolaridade e, por isso, vista como trabalhadora de baixa qualificação profissional. Neste sentido, merece um adendo às empregadas domésticas que têm se organizado para o fortalecimento da categoria, buscando espaço político e investindo na qualificação das profissionais. Esta realidade denota que, para a sociedade brasileira, alcançar boa qualificação acadêmica e ser profissional de qualidade não são atributos para afrodescendentes. Para as mulheres entrevistadas, o racismo ainda persiste mesmo tendo conquistado sucesso acadêmico e profissional.
Ao longo dos anos as mulheres têm conquistado espaços inusitados na sociedade brasileira e mundial, ocupando lugares antes concebidos como específicos para os homens. No entanto, mesmo constatando-se a capacidade feminina, os preconceitos ainda prevalecem; as concepções sobre o papel feminino ainda o condiciona a coadjuvante na superação dos entraves da convivência e na busca de solução para problemas seculares.
As mulheres foram à luta ultrapassando os limites impostos e foram mostrando para si mesmas sua condição de colocar suas capacidades em movimento, gerando mudanças no comportamento e, consequentemente, já não se limitando às fronteiras antigas. Do mesmo modo, as afrodescendentes vêm conquistando seu espaço e abrindo perspectivas para novo modo de ser e de se por no mundo.
Irmã Elizete Dias da Silva
Religiosa da Congregação das Irmãs Servas da Sagrada Família, Psicóloga pela UFBA, Mestranda em Educação pela UFPI.