sábado, 6 de agosto de 2011

Afrodescendente, o neonegro

Autor: Antonio Risério

Disponível em: . Data de publicação: Quarta, 10 de janeiro de 2007, 07h52.
Acesso em: 01.08.2011.

Não existem mais pretos no Brasil. Agora, são todos "afrodescendentes". Aliás, houve um momento em que a palavra "preto", sabe-se lá por quê, foi considerada pejorativa. Ninguém era, ou melhor, ninguém queria ser "preto". Todo mundo era ou queria ser "negro". Curiosamente, o que acontecia nos Estados Unidos era justamente o contrário. A expressão "negro" é que era denunciada, atacada como racista. Nos EUA, ninguém queria ser "negro". Eram todos "pretos". Black. Não havia um "poder negro", mas um "poder preto", black power. E o marketing da auto-estima negra fazia circular, com sucesso extraordinário, o slogan "black is beautiful" - 'preto é bonito'.
Em termos lógicos, a frase deveria ser considerada racista, do ponto de vista de nossos movimentos negros, durante as décadas de 70 e 80 do século passado... Mas isso ficou para trás. Nossos ideólogos racialistas simplesmente arquivaram os vocábulos "preto" e "negro". O que passou a existir, de uns tempos para cá, foi uma nova categoria. Uma espécie de neonegro - o afrodescendente. Mas o que é mesmo que isso significa? Vamos por partes, como diria Jack, o estripador.
O sintagma "afrodescendente" é uma das fórmulas verbais mais repetidas (e mais lustrosas) do atual léxico ativista que grupos negromestiços brasileiros importaram dos EUA nesses últimos anos. Fórmula, sim. E adotada pelo poder, por nossos governantes, por tudo quanto é político que, pouco importa se de "direita" ou de "esquerda", anda sempre à cata de votos, de aprovação, de ser considerado "progressista" (outra fórmula que faz muito pouco sentido, remetendo, na verdade, às perspectivas e esperanças da Revolução Industrial, que colocou o "progresso" como objetivo supremo da humanidade), de obter alguma espécie de aval ou beneplácito social. Mas, se a fórmula "afrodescendente" pode ser perfeita com relação à situação norte-americana, seu foco, certamente, não incide sobre nós.
Porque tal fórmula ou conceito, tal "ideologema" (como diriam os estruturalistas), apenas sublinha e recorta, cirurgicamente, uma realidade preexistente: o fracionamento étnico de uma nação. Coisa que, se sempre foi facilmente verificável nos Estados Unidos, nunca chegou a se desenhar com clareza no Brasil, com a nossa profusão - socialmente reconhecida, o que é fundamental - de seres mesclados ou híbridos.
Houve uma tentativa anterior de operar nesta direção cirúrgica. Uma investida político-ideológica que apostou no fracionamento racial ou étnico do povo brasileiro. Foi na década de 1930, quando o pensamento nazista pintou por aqui. Ali, pela primeira vez em nossa história moderna, topamos com um empreendimento assemelhado ao atual esforço de aplicação da categoria "afrodescendente". Em "A Identidade do Brasil Meridional" (texto incluído na coletânea "A Crise do Estado-Nação", organizada por Adauto Novaes), o sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, citando um certo Mário Martins, sintetiza:
"Os primeiros intelectuais que elaboraram a diferenciação dos brasileiros por categoria étnica ou religiosa foram os nazistas. O movimento nazista não empolgou a grande maioria dos brasileiros descendentes de alemães, mas também está longe de ter sido uma minoria completamente irrelevante. De acordo com o discurso nazista, não haveria povo brasileiro. 'Não havia, nunca existiram brasileiros, salvo os indígenas. Havia os luso-brasileiros, os sírio-brasileiros, os franco-brasileiros, os afro-brasileiros e etc.' Em 1937, reuniu-se o Terceiro Congresso do Círculo Teuto-Brasileiro... Suas posições intelectuais apontavam para a formação de uma consciência étnica que se manifestasse em uma comunidade distinta e separada enquanto teuto-brasileira... 'Como no Brasil a etnia lusitana é a portadora da cultura oficial, da língua oficial e do poder político, entende-se hoje no Brasil por nacionalidade o reconhecimento da chefia política dos lusos... Nós não reconhecemos a etnia lusitana como representante exclusiva do nacionalismo brasileiro... Com isso nós nos tornamos uma minoria étnica e criamos uma situação semelhante à dos alemães dos sudetos'. O teuto-brasileirismo era interpretado como 'o gérmen do retalhamento do Brasil, com o nazismo no momento, ou com outro nome qualquer futuramente'".
Meus amigos dos movimentos negros (no plural, sempre) que me desculpem: o parentesco é desconfortável, mas é real. Começa com o nazismo esse tipo de leitura que aponta para a divisão étnica ou racial do país. E o parentesco, além de desconfortável, nada tem de superficial ou distante. Pelo contrário: é íntimo e profundo.
Mas vamos adiante. Modismo terminológico à parte, o que o conceito de "afrodescendente" tem a ver com a condição, a circunstância e o momento do negromestiço brasileiro hoje?
É mais do que evidente que milhões de brasileiros possuem ascendência africana, embora raríssimos tenham alguma idéia da parte e do povo da África aos quais suas origens poderiam ser eventualmente retraçadas. Mas o conceito de "afrodescendente" não se refere a esta realidade óbvia e geral. Ao contrário, comprime e estreita o horizonte, afunilando-o numa direção precisa. Quando um indivíduo nascido no Brasil se define como "afrodescendente", ele, desde que saiba do que está falando (o que nem sempre acontece, mesmo no meio universitário e independentemente de cor, classe, credo e preferências sexuais), nos diz o seguinte: que se vê, se sente e se percebe, em primeiro lugar, como um descendente de africanos. E só então, secundariamente, como brasileiro.
Ao Brasil caberia, nesse quadro, um lugar identitário subordinado. Teríamos, assim, o ser brasileiro como complemento ou apêndice do ser africano - e de um ser africano mítico, não é preciso dizer. Bem, é possível que o tal indivíduo acredite piamente no que diz. Afinal, é a ideologia, não a fé, que move montanhas. Mas é evidente que estamos diante de uma fantasia. Ou será que Geraldo Pereira, Pelé, Marisa Montini, Emanoel Araújo, Martinho da Vila, Romário, Camila Pitanga, Lázaro Ramos e Tati Quebra-Barraco se achavam ou se acham principalmente africanos - e só secundariamente brasileiros?

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